I – O carrinheiro e eu
Outro dia
estava voltando para casa e vi um homem carregando um carrinho com papelões, um
homem moreno e muito simples, de feição cansada, provavelmente não deveria ser
muito velho, mas o aspecto era de uma idade provavelmente muito maior do que a
de seu registro de nascimento, se é que possuía um.
Olhei para
aquela cena e pensei:
– O que
diferencia este homem de mim?
Cheguei à
conclusão que nossa diferença era basicamente o local onde nascemos.
Certamente se
eu tivesse nascido em uma família simples como a dele, estaria carregando
carrinhos com materiais recicláveis também. E vice e versa, é bem provável que
aquele homem seria hoje um advogado, ou quem sabe qualquer outro profissional
graduado com um acesso à educação formal bem diferente.
Que sociedade
estranha a que vivemos!
II – Quem sou eu? Quem somos nós?
– Somos construção.
Na semana
passada estava quase dormindo quando surgiu uma epifania.
Há algum tempo
tenho contemplado como as coisas mudam constantemente. No Budismo, nos
referimos muito a esse fenômeno como impermanência.
Ao dar-me conta da impermanência de meus
próprios conceitos, fixações, gostos e pensamentos, surgiu uma pequena
angústia.
Quem sou eu
afinal? Do que eu gosto? O que eu quero? O que é certo para mim?
A angústia
surgiu por perceber que aquilo que sempre sustentei como um “eu” talvez não
fosse tão sólido quanto parecia até aquele momento.
Entretanto,
foi essa mesma angústia que culminou numa compreensão muito maior sobre o “eu”,
os “outros” e “nós”.
Percebi que
todos nós construímos nossas identidades e que nossa maneira de ver o mundo é
fruto dessa construção. Desde pequenos tijolo por tijolo são agregados a essa
construção. Aprendemos o que é certo ou errado conforme o ambiente em que
vivemos. Tudo ao redor nos influencia, desde a família em que crescemos e os
adultos com que convivemos, até a cultura em que nos desenvolvemos.
O que nós
pensamos, a forma como reagimos, porque alimentamos alguns impulsos e freamos
outros, até as percepções e os sentidos (visão, audição, etc.) passam por
filtros de utilidade/necessidade que varia conforme o momento e o local em que
estamos.
Nesse momento,
lembrei-me do carrinheiro, e pensei que certamente não seria a mesma pessoa se
tivesse nascido naquele contexto. Isso é tão óbvio...
E então
percebi que somos todos como folhas em branco. Aos poucos vamos desenhando e
escrevendo nessas folhas, às vezes é o mundo que escreve em nós, mas quer
sejamos nós mesmos ou o mundo, a questão é que nunca nos damos conta de que estamos
escrevendo, e parece que aquilo sempre foi do mesmo jeito.
Outra coisa
interessante de notar é que nessa folha que somos, certamente escrevemos a
lápis, porque constantemente estamos apagando e redesenhando o conteúdo de
nossas páginas. Somamos alguns rabiscos e às vezes parecem tão legais que
criamos certo apego a eles, porém, pode acontecer de algum fator externo apagar
aquilo que tanto gostamos na nossa folha, e eis uma grande causa de sofrimento
humano.
Dar-se conta
dessa construção pode ser um pouco difícil, pois tem um teor de insegurança –
Em que posso me agarrar afinal se tudo muda, se o desenho do lápis é tão
frágil?
Pois é, é uma
grande questão, mas é ao mesmo tempo libertadora, pois ao perceber que estamos
escrevendo em uma folha branca com alguns desenhos, vemos que é possível
escrever e desenhar o que quisermos, sem precisar ficar fixados naqueles
desenhos antigos a menos que seja o que realmente queremos.
Acontece que
para isso, é preciso antes dar-se conta de que há essa possibilidade, há essa
liberdade, o que infelizmente não é comum na sociedade maluca em que vivemos,
constantemente cheios de coisas para fazer e sem tempo para parar e refletir
sobre o que de fato estamos fazendo.
III – Sonho com o assaltante.
Há algum tempo
sonhei que estava voltando para casa e passei por um rapaz, olhei bem para ele
e continuei meu caminho.
Chegando na
quadra de casa, estava caminhando rapidamente quando alguém passou correndo no
sentido oposto. Ao chegar ao portão, já com a chave na mão, o portão que estava
meio enguiçado demorou para abrir, então o cara que passou correndo voltou e
veio me assaltar.
Quando vi, era
o mesmo rapaz que eu tinha percebido lá no ponto de ônibus, que veio pela outra
rua para me assaltar.
Ele me falou
que era um assalto e eu olhei meio assustada, mas lhe disse para se acalmar,
que eu não iria reagir, e que ele poderia levar o que quisesse.
O cara
resolveu entrar em casa e ver o que ele iria levar, minha mãe e meu pai estavam
em casa e também ficaram assustados, mas eu acalmei todos dizendo para ninguém
reagir enquanto o cara deu uma volta pela casa.
Eu lhe ofereci
o dinheiro que tinha na carteira, que era R$ 20,00, mas ele disse que não
queria dinheiro, queria algo pequeno e fácil de levar, mas ainda não tinha
decidido o que seria.
Perguntei o
que ele queria, e que iríamos dar o que ele quisesse. Então, ele simplesmente
pediu comida.
Atendendo ao
pedido, esquentamos um pouco de comida e lhe entregamos, foi um momento de
acolhimento, conversamos um pouco ali todos meio assustados, e aos poucos o
moço se acalmou.
Num momento em
que se percebeu que ele já estava arrependido do assalto eu comentei:
- Sei que a
sociedade é muito desigual e leva as pessoas a quererem mais do que podem.
Eu o abracei e
disse – Não é sua culpa.
Ele
retribuindo o abraço respondeu - Também não é sua culpa, e foi embora.
IV - De quem é a culpa? Culpa?
Depois de um
tempo, falando desse sonho surgiram mais algumas questões:
– De quem é a
culpa então?
– Será que é
possível falar em culpa? O que é culpa?
Certa vez li
que culpa é um conceito ocidental, baseado na ideia de pecado original, e que
no oriente, até pouco tempo atrás, não se conseguia entender direito esse
conceito.
Retomando o
que estava pensando sobre como somos produto de nossa história de vida e do
ambiente em que vivemos, realmente não faz muito sentido falar em culpa.
Se eu acho a
sociedade em que vivemos estranha, injusta e desigual, há mesmo necessidade de
um culpado? E se sim, quem seria?
Não somos nós
que construímos essa sociedade maluca, todos nós que estamos vivendo nesse
momento já nascemos nela, e a grande maioria das pessoas não faz mais do que
viver da forma que aprendeu, sob os princípios e conceitos que lhe foram
ensinados.
Então não dá
pra dizer que somos culpados.
Seriamos
culpados por perpetuar e mantê-la assim? Também parece complicado pensar dessa
forma, mas, indiferentemente de culpa ou não, a realidade continua aí.
E isso me fez lembrar a
música do Plebe Rude:
Não é nossa culpa,
nascemos já com a benção,
Mas isso não é
desculpa, para a má distribuição.
Até quanto esperar, a
plebe ajoelhar,
Esperando a ajuda de
deus?
Pois é...
Acho que a
grande questão que surge é:
– O que fazer
quando nos damos conta de que há algo errado? O que é possível ser feito?
Se eu percebo
algo errado e tiver condições de consertar, ótimo, certamente é o que deveria ser
feito, mas e se não tiver condição para tanto, como no caso de se dar conta de
que vivemos uma espécie de loucura coletiva, e que há algo muito errado na
forma com que fazemos as coisas diariamente?
Acho que é
momento de refletir e trazer essa questão à tona.
Se a maioria
das pessoas não se dá conta disso, talvez não seja culpa delas, mas também faz
parte da maneira como elas foram ensinadas a pensar e ver o mundo.
Sendo assim,
penso que é importante que aqueles que conseguem problematizar isso de fato o
façam, não apenas para cada um de si, mas tentando despertar esses
questionamentos para que juntos possamos quem sabe um dia encontrar uma solução
melhor para a nossa sociedade.
Podemos fazer
muito pouco individualmente, mas coletivamente as coisas ganham maior sentido.
Enfim, acho
que é por isso que acabei escrevendo tudo isso.
Espero que
assim também ajude mais alguém a sair do automático da vida e pensar sobre
porque vivemos e nos submetemos a uma sociedade tão desigual e injusta.
Nossa! Tô arrepiada! Juliana, você sintetizou lindamente algo que já tenho há tempos no meu coração e que desenvolvi depois de muita conversa com o meu lindo marido psicólogo, e com muita leitura, claro! Parabéns! Vou compartilhar muito! Um beijão.
ResponderExcluirQue bom que gostou Jeniffer! Eu pensei muito sobre tudo isso também, porque sempre foi mais fácil culpar né? Alguns culpam o banqueiro e os donos do mundo, outros culpam os incompetentes e os "vagabundos"... mas no fim acho que o mais importante é dar o próximo passo que é justamente superar essa culpa e nos questionar! Acho que só assim um dia teremos maturidade suficiente para poder formular algo melhor.
ExcluirPerfeito, Ju. Continue pensando e escrevendo, que continuaremos lendo e refletindo!
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