segunda-feira, 26 de maio de 2014

Vamos refletir juntos?



I – O carrinheiro e eu



Outro dia estava voltando para casa e vi um homem carregando um carrinho com papelões, um homem moreno e muito simples, de feição cansada, provavelmente não deveria ser muito velho, mas o aspecto era de uma idade provavelmente muito maior do que a de seu registro de nascimento, se é que possuía um.

Olhei para aquela cena e pensei:

– O que diferencia este homem de mim?

Cheguei à conclusão que nossa diferença era basicamente o local onde nascemos.

Certamente se eu tivesse nascido em uma família simples como a dele, estaria carregando carrinhos com materiais recicláveis também. E vice e versa, é bem provável que aquele homem seria hoje um advogado, ou quem sabe qualquer outro profissional graduado com um acesso à educação formal bem diferente.

Que sociedade estranha a que vivemos!



II – Quem sou eu? Quem somos nós? – Somos construção.



Na semana passada estava quase dormindo quando surgiu uma epifania.

Há algum tempo tenho contemplado como as coisas mudam constantemente. No Budismo, nos referimos muito a esse fenômeno como impermanência.

 Ao dar-me conta da impermanência de meus próprios conceitos, fixações, gostos e pensamentos, surgiu uma pequena angústia.

Quem sou eu afinal? Do que eu gosto? O que eu quero? O que é certo para mim?

A angústia surgiu por perceber que aquilo que sempre sustentei como um “eu” talvez não fosse tão sólido quanto parecia até aquele momento.

Entretanto, foi essa mesma angústia que culminou numa compreensão muito maior sobre o “eu”, os “outros” e “nós”.

Percebi que todos nós construímos nossas identidades e que nossa maneira de ver o mundo é fruto dessa construção. Desde pequenos tijolo por tijolo são agregados a essa construção. Aprendemos o que é certo ou errado conforme o ambiente em que vivemos. Tudo ao redor nos influencia, desde a família em que crescemos e os adultos com que convivemos, até a cultura em que nos desenvolvemos.

O que nós pensamos, a forma como reagimos, porque alimentamos alguns impulsos e freamos outros, até as percepções e os sentidos (visão, audição, etc.) passam por filtros de utilidade/necessidade que varia conforme o momento e o local em que estamos.

Nesse momento, lembrei-me do carrinheiro, e pensei que certamente não seria a mesma pessoa se tivesse nascido naquele contexto. Isso é tão óbvio...

E então percebi que somos todos como folhas em branco. Aos poucos vamos desenhando e escrevendo nessas folhas, às vezes é o mundo que escreve em nós, mas quer sejamos nós mesmos ou o mundo, a questão é que nunca nos damos conta de que estamos escrevendo, e parece que aquilo sempre foi do mesmo jeito.

Outra coisa interessante de notar é que nessa folha que somos, certamente escrevemos a lápis, porque constantemente estamos apagando e redesenhando o conteúdo de nossas páginas. Somamos alguns rabiscos e às vezes parecem tão legais que criamos certo apego a eles, porém, pode acontecer de algum fator externo apagar aquilo que tanto gostamos na nossa folha, e eis uma grande causa de sofrimento humano.

Dar-se conta dessa construção pode ser um pouco difícil, pois tem um teor de insegurança – Em que posso me agarrar afinal se tudo muda, se o desenho do lápis é tão frágil?

Pois é, é uma grande questão, mas é ao mesmo tempo libertadora, pois ao perceber que estamos escrevendo em uma folha branca com alguns desenhos, vemos que é possível escrever e desenhar o que quisermos, sem precisar ficar fixados naqueles desenhos antigos a menos que seja o que realmente queremos.

Acontece que para isso, é preciso antes dar-se conta de que há essa possibilidade, há essa liberdade, o que infelizmente não é comum na sociedade maluca em que vivemos, constantemente cheios de coisas para fazer e sem tempo para parar e refletir sobre o que de fato estamos fazendo.



III – Sonho com o assaltante.



Há algum tempo sonhei que estava voltando para casa e passei por um rapaz, olhei bem para ele e continuei meu caminho.

Chegando na quadra de casa, estava caminhando rapidamente quando alguém passou correndo no sentido oposto. Ao chegar ao portão, já com a chave na mão, o portão que estava meio enguiçado demorou para abrir, então o cara que passou correndo voltou e veio me assaltar.

Quando vi, era o mesmo rapaz que eu tinha percebido lá no ponto de ônibus, que veio pela outra rua para me assaltar.

Ele me falou que era um assalto e eu olhei meio assustada, mas lhe disse para se acalmar, que eu não iria reagir, e que ele poderia levar o que quisesse.

O cara resolveu entrar em casa e ver o que ele iria levar, minha mãe e meu pai estavam em casa e também ficaram assustados, mas eu acalmei todos dizendo para ninguém reagir enquanto o cara deu uma volta pela casa.

Eu lhe ofereci o dinheiro que tinha na carteira, que era R$ 20,00, mas ele disse que não queria dinheiro, queria algo pequeno e fácil de levar, mas ainda não tinha decidido o que seria.

Perguntei o que ele queria, e que iríamos dar o que ele quisesse. Então, ele simplesmente pediu comida.

Atendendo ao pedido, esquentamos um pouco de comida e lhe entregamos, foi um momento de acolhimento, conversamos um pouco ali todos meio assustados, e aos poucos o moço se acalmou.

Num momento em que se percebeu que ele já estava arrependido do assalto eu comentei:

- Sei que a sociedade é muito desigual e leva as pessoas a quererem mais do que podem.

Eu o abracei e disse – Não é sua culpa.

Ele retribuindo o abraço respondeu - Também não é sua culpa, e foi embora.



IV - De quem é a culpa? Culpa?



Depois de um tempo, falando desse sonho surgiram mais algumas questões:

– De quem é a culpa então?

– Será que é possível falar em culpa? O que é culpa?

Certa vez li que culpa é um conceito ocidental, baseado na ideia de pecado original, e que no oriente, até pouco tempo atrás, não se conseguia entender direito esse conceito.

Retomando o que estava pensando sobre como somos produto de nossa história de vida e do ambiente em que vivemos, realmente não faz muito sentido falar em culpa.

Se eu acho a sociedade em que vivemos estranha, injusta e desigual, há mesmo necessidade de um culpado? E se sim, quem seria?

Não somos nós que construímos essa sociedade maluca, todos nós que estamos vivendo nesse momento já nascemos nela, e a grande maioria das pessoas não faz mais do que viver da forma que aprendeu, sob os princípios e conceitos que lhe foram ensinados.

Então não dá pra dizer que somos culpados.

Seriamos culpados por perpetuar e mantê-la assim? Também parece complicado pensar dessa forma, mas, indiferentemente de culpa ou não, a realidade continua aí.
E isso me fez lembrar a música do Plebe Rude:


Não é nossa culpa, nascemos já com a benção,

Mas isso não é desculpa, para a má distribuição.

Até quanto esperar, a plebe ajoelhar,

Esperando a ajuda de deus?



Pois é...

Acho que a grande questão que surge é:

– O que fazer quando nos damos conta de que há algo errado? O que é possível ser feito?

Se eu percebo algo errado e tiver condições de consertar, ótimo, certamente é o que deveria ser feito, mas e se não tiver condição para tanto, como no caso de se dar conta de que vivemos uma espécie de loucura coletiva, e que há algo muito errado na forma com que fazemos as coisas diariamente?

Acho que é momento de refletir e trazer essa questão à tona.

Se a maioria das pessoas não se dá conta disso, talvez não seja culpa delas, mas também faz parte da maneira como elas foram ensinadas a pensar e ver o mundo.

Sendo assim, penso que é importante que aqueles que conseguem problematizar isso de fato o façam, não apenas para cada um de si, mas tentando despertar esses questionamentos para que juntos possamos quem sabe um dia encontrar uma solução melhor para a nossa sociedade.

Podemos fazer muito pouco individualmente, mas coletivamente as coisas ganham maior sentido.

Enfim, acho que é por isso que acabei escrevendo tudo isso.

Espero que assim também ajude mais alguém a sair do automático da vida e pensar sobre porque vivemos e nos submetemos a uma sociedade tão desigual e injusta.

3 comentários:

  1. Nossa! Tô arrepiada! Juliana, você sintetizou lindamente algo que já tenho há tempos no meu coração e que desenvolvi depois de muita conversa com o meu lindo marido psicólogo, e com muita leitura, claro! Parabéns! Vou compartilhar muito! Um beijão.

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    1. Que bom que gostou Jeniffer! Eu pensei muito sobre tudo isso também, porque sempre foi mais fácil culpar né? Alguns culpam o banqueiro e os donos do mundo, outros culpam os incompetentes e os "vagabundos"... mas no fim acho que o mais importante é dar o próximo passo que é justamente superar essa culpa e nos questionar! Acho que só assim um dia teremos maturidade suficiente para poder formular algo melhor.

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  2. Perfeito, Ju. Continue pensando e escrevendo, que continuaremos lendo e refletindo!

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